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22-12-2003   Actividades da PGDL
AUTÓPSIAS MEDICO-LEGAIS E AUTÓPSIAS CLÍNICAS.
Elementos a considerar para sintonia na avaliação das situações - DIAP de Lisboa
DIAP de Lisboa
Imperativo de rigor na interpretação da Lei torna desejável a existência de sintonia entre os magistrados no que toca à avaliação das situações que levam à determinação ou dispensa de realização de autópsias médico-legais em cadáveres cujo óbito é comunicado ao DIAP.
A quantidade de papeis relativos a óbitos também releva. A título de exemplo, em Novembro de 2003, encontram-se pendentes, na chamada 14ª secção do DIAP, 670 processos relativos a óbitos, dos quais 272 há mais de oito meses, sendo que no mesmo mês foram registados 192 inquéritos novos e findaram 207. Neste registo não se inclui o acervo de comunicações óbitos certificados pelo médico assistente. À quantidade de papeis corresponde empenho de meios humanos no DIAP e certamente também no Instituto Nacional de Medicina Legal (INML).
Ocorre ainda o problema dos custos das autópsias médico-legais, que são pagas pelo Orçamento do DIAP ao INML[1].
Estas preocupações têm sido recorrentes no DIAP e presidiram à Ordem de Serviço n.º 1/2002 do procurador da República da Secção Central.
A comparação do número de processos por óbito com o dos inquéritos que poderiam envolver morte relacionada com crime, doloso ou negligente, leva a admitir excesso na indagação médico - legal das causas da morte.[2]
Interessa, pois, oferecer elementos que propiciem a ultrapassagem dessas preocupações.
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Autópsias médico-legais e autópsias clínicas são realidades distintas, na lei e nos procedimentos técnicos.

As autópsias clínicas destinam-se à “precisão de diagnóstico”[3], conhecem “o enquadramento clínico dos diagnósticos anatomo-patológicos, por forma a ter uma compreensão global das doenças, seus mecanismos de produção e perfil evolutivo”[4] , visam “...um melhor conhecimento do estado patológico do doente falecido,[...] também precisar novas causas que contribuiram para a morte, ajudando ao aperfeiçoamento, à pesquisa e ao controlo do diagnóstico clínico”[5].

As autópsias médico-legais, com regime previsto no capítulo IV do DL 11/98 de 24 de Janeiro[6], são perícias, são um meio de prova processual. Têm procedimentos técnicos específicos[7] sendo que “... a realização de autópsia médico-legal só se compreende no âmbito e para realização dos fins de um processo – penal ou de jurisdição laboral. ”

Significa que, com uma circunstância comum – a morte – o escopo de indagação das autópsias médico - legais e das autópsias clínicas não é coincidente, nem tão pouco se reconduz a interesses que justificam outras intervenções em cadáveres[8].

Que “morte”[9] interessa à autópsia médico-legal? Morte violenta, morte devida a causa ignorada, morte não natural[10]? Morte súbita, morte de causa natural, de causa acidental, por suicídio, por homicídio[11]? Morte pelas inúmeras outras causas codificadas na CID-10[12]?

Simplisticamente pergunta-se, é de fazer autópsia médico - legal para, no desconhecimento da causa da morte, descobrir de que é que alguém morreu? Não.

É que mesmo em situações de morte violenta ou de causa ignorada, a lei, no artigo 54º do DL 11/98, admite a hipótese de dispensa de autópsia – conquanto se possa concluir com suficiente segurança pela inexistência de suspeita de crime, a partir das informações clínicas e demais elementos. Este afastamento da suspeita e de dispensa da autópsia é compatível com a formulação dos dois números do artigo 197 do Código de Registo Civil, relativo a registo de óbitos.

A conclusão quanto à inexistência de suspeita de crime, parece exigir alguma razoabilidade na apreciação da informações clínicas e elementos disponíveis, já que por exemplo, sempre se poderia conceber academicamente que todo e qualquer decesso repentino na via pública podia esconder um envenenamento, ou todo e qualquer suicídio podia ser afinal um homicídio, ou mascarar um crime de incitamento ou ajuda ao suicídio.

O Parecer da PGR n.º 71/87 recorta a noção para nós relevante de morte por causa ignorada ou de causa desconhecida:

“Causa ignorada de morte, morte de causa desconhecida ou desconhecimento de causa [...] em sentido médico - legal não coincide conceitualmente com ignorância ou desconhecimento, em termos de rigor de diagnóstico, da origem ou do facto clínico desencadeante da morte. Não obstante a impossibilidade ou dificuldade de apurar em termos médicos a causa determinante da morte, haverá nesse sentido, ausência de conhecimento exacto da causa da morte, mas não, ou não necessariamente, morte de causa ignorada em sentido médico – legal [...] ...o conceito de causa desconhecida ou ignorada fica aquém do sentido imediatamente sugerido pela aparente relação de identidade entre desconhecimento da causa e indeterminação diagnóstica do motivo ou processo clínico indutor da morte. Estando determinado, com rigorosa ou apenas aproximada, verosímil ou provável causa, um processo mórbido desencadeante da morte, e nenhuma razão, consequentemente, exista que permita fazer suspeitar que a morte não ocorreu na sequência desse processo (de causa natural), não se verifica, nesse sentido de precisão conceitual, causa desconhecida ou ignorada para determinar a exigência de realização de autópsia. Morte de causa desconhecida, em conclusão, será aquela que possa ser suspeita de não ter origem em causa natural”[13]

Interpretando a lição do Professor Lesseps Lourenço Reys [14], em medicina legal a morte é tipificada na dicotomia morte natural contraposta a morte violenta.

A morte violenta é a “que resulta directa ou indirectamente da acção duma violência externa”[15] e desdobra-se tipicamente em morte por acidente (v.g. em circunstâncias rodoviárias, laborais, afogamentos...) por suicídio e por homicídio.

Quanto à noção de morte súbita, explica-se que “A morte súbita é de causa natural. Por tal motivo, os autores anglo-saxónicos chamam-na de «sudden natural death». As circunstâncias em que a morte ocorre (curto intervalo de tempo e modo imprevisto ou inesperado) faz com que sejam mortes sem assistência médica ou, no caso dela ter existido nos 7 dias que precederam a morte, a respectiva causa seja desconhecida do médico assistente.”[16]

*

Em conclusão, retoma-se agora, com os conceitos mais claros, a ideia anterior.

Dependendo das informações clínicas e demais elementos, será de considerar a possibilidade de dispensa de autópsia em situações que, ainda que enquadráveis nos conceitos (médico - legalmente relevantes) de morte violenta e de causa ignorada, seja possível concluir com suficiente segurança pela inexistência de suspeita de crime.

Importa sublinhar as orientações da referida Ordem de Serviço no tocante a óbitos verificados em hospital, rectius, instituições públicas de saúde ou instituições privadas de saúde com internamento, no sentido de ser solicitada à instituição a informação clínica pertinente, se omissa (preenchimento compreensivo do modelo aprovado pela Portaria 193/99 de 23.03 e de modelo interno se existente), sem o que o despacho de realização ou dispensa de autópsia médico - legal não é proferido, nem o cadáver removido para a delegação de Lisboa do IMNL nem entregue à família.

Importa solicitar aos OPC’s, maxime à PSP, que informe, nos termos do n.º 1 do artigo 52 do DL 11/98, na medida mais abrangente quanto a circunstâncias que possam relevar para a decisão em causa.

Sugiro, caso o sentido da informação mereça acolhimento superior, seja a mesma transmitida ao Senhor Procurador da República que dirige a secção central e a equipa de missão de articulação com os OPC e que fique a mesma disponível na sala do turno de sábados e feriados ao cuidado dos senhores funcionários que habitualmente asseguram o

turno, bem como na subsecção que assegura o movimento do expediente de óbitos em turno de férias judiciais.

É quanto julgo dever submeter à consideração de V. Ex.ª.

Lisboa, 22 de Dezembro de 2003

Elisabete Matos





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[1] As autópsias médico - legais são pagas segundo a tabela em anexo à Portaria n.º 1178-C/2000 de 15.12. O valor mínimo cifra-se em 7UC. O problema dos encargos das perícias médico - legais é abordado em “Os Custos da Justiça, Actas do Colóquio Internacional, Coimbra, 25-27 de Setembro de 2002”, obra coordenada por João Álvaro Dias, Almedina 2003, maxime págs. 122 a 131.

[2] Cfr. os elementos estatísticos do DIAP disponíveis no SGI nos “Mapa do Movimento Mensal de Processos por Inquérito Por Infracção [que discrimina a quantidade de inquéritos do DIAP em função dos ilícitos], MM1 e MM1( global).

[3] Expressão do artigo 7º do DL 411/98 de 30.12, alterado pelo DL 5/2000 de 29.12 e pelo DL 138/2000 de 13.07, diploma que estabelece o regime jurídico da remoção, transporte, inumação, exumação, trasladação e cremação de cadáveres; cfr. artigo 8º n.º 3 c) do mesmo diploma. Cfr. artigo 14 da Lei 12/93 de 22.04 que estabelece o regime de colheita e transplante de órgãos e tecidos de origem humana.

[4] Cfr. Ponto 6.2.4 do Programa de Formação do Internato Complementar de Anatomia Patológica, constante da Portaria n.º 50/97 de 20.01, alterada pela Portaria 199/97 22.03. Cfr. nota 12, parte final.

[5] Cfr. Parecer da PGR n º 29/98, disponível no site da PGR, com referências ao Parecer da PGR n.º 71/87, disponível no BMJ n.º 379, pág. 102 e segs.

[6] Capítulo mantido em vigor, tal como Capítulos III e V e o artigo 90º , pelo DL 96/2001 de 26.12 que aprovou o Estatuto do Instituto Nacional de Medicina Legal.

[7] Cfr. o Regulamento do Internato Complementar de Medicina Legal, aprovado pela Portaria 247/98 de 21.04, maxime o Anexo 1 e os objectivos de conhecimento e de desempenho e compare-se com o referido na nota 4.

[8] Como a dissecação de cadáveres e a extracção de peças, tecidos ou órgãos para fins de ensino e investigação científica, com regime previsto no DL 274/99 de 22.07, e como os actos em cadáveres para colheita e transplante de órgãos e tecidos de origem humana, com regime previsto na Lei 12/93 de 22.04.

[9] Não se pensa no critério legal de morte, definido na Lei 141/99 28.08, morte que os médicos verificam de acordo com a actuação prevista na Declaração da Ordem dos Médicos de 01.09.94 publicada no DR I Série B de 11.10.1994.

[10] Expressões do DL 11/98.

[11] Expressões do programa de formação e de provas do internato complementar de medicina legal, constantes da já referida Portaria n.º 247/98 de 21.08.

[12] Existe a Classificação Internacional de Doenças - 10ª Revisão, cujo conteúdo está disponível no site do Instituto Nacional de Estatística (www.ine.pt). O seu Regulamento (Regulamento das Doenças, Traumatismos e Causas de Morte da Organização Mundial de Saúde, de 1967 ( 8ª revisão internacional) ) foi aprovado pelo DL 138/70, de 04.04, rectificado em DR de 31.07.1970 que publicou o texto por lapso omitido no DL 138/70.

A Classificação serve à elaboração das estatísticas de mortalidade e morbilidade nacionais, cuja elaboração é obrigatória por força do artigo 4º do Regulamento; serve também à identificação dos grupos de diagnósticos homogéneos, à identificação da casuística dos hospitais, etc.

Para cumprimento do Regulamento, foram criados modelos de certificado de óbito do Ministério da Saúde para utilização na certificação médica da morte, modelos que actualmente estão previstos na Portaria n.º 1451/2001 de 22.12. A consulta da CID-10 torna compreensível que a causa de morte levada ao certificado de óbito pelo médico não siga os códigos, que são inúmeros.

A necessidade legal de identificar estados mórbidos conducentes à morte parece fundamentar juridicamente a solicitação de autópsias clinicas, a realizar nos respectivos serviços de anatomo-patologia, para precisão de diagnóstico - ainda que num quadro legal frágil, se se considerar as preocupações do legislador da Lei 12/93 e do DL 274/99 no que tange a intervenções no cadáver. Parece que estes diplomas não cobrem intervenções clínicas no cadáver que não visem colher tecidos ou órgãos e/ou que não visem o ensino e a investigação, mas que se justifiquem tão só pela necessidade do médico hospitalar entender e identificar o processo mórbido que conduziu ao decesso do doente - compreendendo-se sem embargo que esta informação seja preciosa para o conhecimento médico, de cada um dos clínicos e do conjunto do corpo hospitalar.

[13] BMJ, 379 (1988), 110 a 112.

[14] Textos do CEJ / IMLL, Tomo III, Junho de 1988, Seminário de Medicina Legal.

[15] Textos cit. Precisa-se aí, a propósito de morte violenta o seguinte “ Em sentido médico-legal entende-se por morte violenta a que resulta directa ou indirectamente da acção de uma violência externa. Note-se que, em sentido clínico, pode ocorrer morte por causas naturais em circunstâncias de violência (epilepsia , p. ex.). Estas mortes não são consideradas violentas no sentido médico - legal. Reciprocamente, condições existem em que a acção do agente externo não produz violência aparante (intoxicação com monóxido de carbono, medicamentos depressores do sistema nervoso central, etc.). Estas mortes são violentas em sentido médico - legal.”

[16] Veja-se o n.º 3 do artigo 93 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos.
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